Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso em Habeas Corpus (RHC) 163.334, definiu, por maioria, que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”, a qual disciplina os crimes contra a ordem tributária.
Assim, neste artigo abordaremos com mais ênfase a decisão proferida pelo STF e as consequências decorrentes dela. Para entender mais profundamente o ICMS, o que é e como funciona, basta clicar aqui.
1. O Caso
Inicialmente, vale esclarecer que o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), embora tenha as orientações gerais estabelecidas na Lei Kandir, é um imposto de competência Estadual, de forma que cabe a cada estado estabelecer suas próprias diretrizes, o que foi feito pelo estado de Santa Catarina através da Lei 10.927/96 e do Decreto 2.870/01, conhecido como Regulamento do ICMS (RICMS/SC).
Assim, o art. 53 do RICMS/SC prevê que a apuração do ICMS será realizada de forma mensal, e o valor a ser recolhido corresponderá ao resultado do confronto dos débitos e créditos escriturados, sendo que o pagamento deve ser realizado até o dia 10 do mês seguinte ao da apuração (art. 60).
Ainda, o regulamento estabelece que as informações referentes ao ICMS deverão ser prestadas pelos estabelecimentos ao fisco através da Declaração de Informações do ICMS e Movimento Econômico (DIME), conforme dispõe o art. 168, do Anexo 5.
Em procedimento de rotina, a fiscalização Estadual de Santa Catarina, ao analisar a DIME enviada por um comércio, observou que, muito embora houvesse a declaração dos valores referentes ao ICMS, o efetivo recolhimento do imposto não estava sendo realizado. Diante disso, emitiu contra a empresa uma Notificação Fiscal por deixar de efetuar, parcial ou totalmente, o recolhimento do ICMS.
Em 2016, o Ministério Público (MP) de Santa Catarina propôs ação penal contra os representantes legais, por entender que houve prática de crime contra a ordem tributária, previsto na Lei 8.137/90 (art. 2°, II), a qual estabelece que é crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”, trazendo como pena a detenção de 6 meses a 2 anos, e multa.
O MP entendeu ainda que havia a intenção de lesar os cofres públicos, de forma que enquadrou a conduta como dolosa, além de verificar que o não recolhimento ocorreu por oito vezes, suscitando a incidência do art. 71 do Código Penal, que trata do crime continuado.
Em resposta, a defesa alegou a inaplicabilidade da norma penal, tendo em vista que na Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional com vigência no Brasil, há a disposição expressa que ninguém será preso por dívida (com exceção à dívida falimentar – casos de inadimplência de pensão alimentícia).
Além disso, travou discussão quanto aos termos “descontado” e “cobrado” da redação do artigo penal (transcrito acima), argumentando que não há crime de apropriação indébita, pois o ICMS que deixou de ser recolhido foi referente a seu débito próprio, tratando-se de mero inadimplemento.
Após o julgamento, o magistrado sentenciou absolvendo os empresários, por entender que não havia crime na conduta cometida, da qual o Ministério Público apelou. Então, ao apreciar o recurso, o Tribunal de Justiça (TJ/SC) determinou o prosseguimento da ação penal.
2. A decisão
Para restabelecer a sentença de absolvição, a defesa dos empresários optou por impetrar Habeas Corpus (HC) no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é uma ação com previsão Constitucional que visa assegurar a liberdade de locomoção.
Contudo, o HC foi negado pois o STJ entendeu que o fato de os empresários realizarem a apuração e a declaração do imposto não afasta o cometimento do crime.
Assim, a defesa dos responsáveis legais buscava no recurso ao STF – RHC – o trancamento da ação penal, pois o mero inadimplemento não é crime descrito na lei. Defendeu ainda que não houve fraude, omissão ou qualquer falsificação nas informações prestadas ao fisco.
Ao chegar no STF, o processo foi distribuído à relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, que realizou audiência aberta ao público para ouvir as partes interessadas. A audiência, segundo o Ministro, foi necessária, pois a matéria transcendia o interesse das partes, sendo uma forma de reflexão sobre a política criminal tributária.
Em seguida, a matéria foi levada ao Plenário para definir se o não recolhimento do ICMS próprio devidamente declarado e não pago poderia ser enquadrado como crime contra a ordem tributária. Ao proferir os votos, os Ministros se dividiram, basicamente, em dois grupos que entendiam:
- Criminalização da conduta quando houver fraude: só poderia ser considerado crime quando o contribuinte utilizasse meios fraudulentos para impossibilitar a cobrança, sob pena de se implementar uma política criminal arrecadatória;
- Criminalização da conduta pelo dolo: condenação da conduta considerando a intenção do contribuinte de lesar os cofres públicos;
Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes defendeu em seu voto que os crimes contra ordem tributária devem ser interpretados conforme a Constituição Federal e, dessa forma, punindo somente os contribuintes que se utilizem de artifícios que visem impossibilitar a cobrança, ou seja, aqueles que por meio de fraudes não realizassem o pagamento do imposto.
Ao seu ver, o comerciante não realiza mero repasse do imposto ao Estado, pois, não raras vezes, decorrentes da sistemática de crédito e débito do ICMS, não há sequer valores a recolher.
Em contrapartida, de acordo com os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Cármem Lúcia e Luiz Fux, o crime não comporta a modalidade culposa (quando o contribuinte age sem intenção). Para eles, o não repasse do ICMS é de conhecimento dos empresários que possuem o ânimo de não pagar.
Já o ministro Roberto Barroso explicou em seu voto que o ICMS de cada operação não integra o patrimônio da empresa, sendo ela mera depositária do valor que deve ser repassado ao Estado. Diante disso, não seria um simples inadimplemento, mas sim uma apropriação indébita (conforme já decidido pela Corte ao apreciar o Tema 69, que veremos a seguir).
O que foi considerado pelos votos dos Ministros elencados acima é que muitas empresas adotam a inadimplência como forma de atuação, o que acaba também violando a livre concorrência, já que prejudica as empresas que fazem o recolhimento da forma correta, estabelecida em lei.
Ao fim do julgamento, com 7 votos a favor e 3 contra, ficou decidido que o contribuinte que deixar de recolher ICMS de forma contumaz, com dolo de apropriação, incide no art. 2°, II, da Lei n° 8.137/90. Ou seja, é crime não recolher o ICMS que foi declarado.
Contudo, não é qualquer pagamento que será punido. De acordo com o entendimento da Corte, serão necessárias condutas cumulativas: 1. dolo, e 2. não pagamento como estratégia de negócio.
Dessa forma, para que o contribuinte seja punido, deverá ser provada a intenção de apropriação dos valores que deveriam ser repassados, assim como o intuito de lesar o fisco e, além disso, ser um devedor contumaz, que deixa de pagar o tributo para obter uma vantagem concorrencial.
Entretanto, a decisão abrirá margem para novas discussões, conforme veremos adiante.
3. Ligação do caso com a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS
Em 2017, o STF, dando procedência ao pedido dos contribuintes, fixou o Tema 69, no seguinte sentido: “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.
A decisão final do processo ainda pende de análise dos embargos opostos pela União visando, principalmente, estabelecer qual ICMS deve ser retirado da base – o constante da Nota Fiscal (NF) ou o efetivamente recolhido (decorrente do confronto entre créditos x débitos).
O argumento principal utilizado para excluir o imposto da base das contribuições foi de que o ICMS não pode ser considerado receita do contribuinte, tendo em vista que apenas transita pela contabilidade da empresa antes de ser repassado ao Estado. Ou seja, o ICMS não é uma receita das empresas, e sim dos Estados.
Diante disso, os Ministros – a exemplo de Edson Fachin e Rosa Weber -, ao analisarem o caso da criminalização do ICMS, levaram em consideração o julgamento do Tema 69, pois se trata de receita dos Estados, de forma que os contribuintes, ao não realizarem o repasse, estariam se apropriando indevidamente de valores que não os pertencem.
O fato de o contribuinte ter declarado na sua escrita fiscal não exime nem comprova sua boa-fé, apenas comprova o fato de que está retendo valores que pertencem ao Estado.
4. Problemas decorrentes da decisão sobre a criminalização do ICMS
Vale ressaltar que a decisão do STF, ao que se depreende dos votos, não é punir os contribuintes que não realizarem o pagamento de um ou dois meses, devido a dificuldades financeiras, mas sim punir aqueles que utilizam o não pagamento como uma forma de benefício empresarial, violando também o princípio da livre concorrência.
Nos votos houve, inclusive, a menção de que esse tipo de conduta priva o país de melhorar, tendo em vista que desvia valores importantes da arrecadação não só do Estado, mas de todo erário.
Contudo, por mais louváveis que tenham sido as considerações levantadas no julgamento, utilizar o Direito Penal como uma tentativa de reduzir os crimes contra ordem tributária não parece adequado, ainda mais considerando que a decisão criou conceitos indeterminados, deixando a punição à discricionariedade de cada julgador.
Além disso, como dito anteriormente, a prisão por dívida é vedada pela Constituição Federal (art. 5°, LVXVII – com exceção da pensão alimentícia, devido ao seu caráter alimentar), o que é corroborado por diversos Tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica (art. 7°).
Nos crimes contra ordem tributária, o principal objetivo é recompor os valores desviados, tanto que a Lei n° 9.249/95 estabeleceu no art. 34 que: “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.
Então, para restabelecer os valores não recolhidos ou desviados, a Fazenda Pública tem vários outros meios que podem ser utilizados para cobrança, como a execução fiscal, protesto, aplicação de multas e penhora de bens.
Além disso, na prática sabemos como é difícil fazer uma prova negativa, que comprove que não houve dolo na conduta, já que nem a declaração do imposto devido pode demonstrar sua “boa-fé”, fazendo com que o contribuinte passe por muitos obstáculos para provar a ausência de intenção de prejuízo ao erário.
Em outras oportunidades considerou-se crime por apropriação indébita quando, ao fazer a retenção do ICMS-ST, esse valor não é repassado aos cofres. Entretanto, esse caso se distingue do recolhimento do ICMS próprio, pois já houve a retenção antecipada do tributo, que será devido nas cadeias subsequentes.
O mesmo ocorre com o empregador que retém do funcionário as contribuições previdenciárias e não as entrega ao fisco federal. Nesse caso também já houve a retenção, faltando apenas o repasse.
Os dois casos mencionados acima diferem-se do ICMS próprio, em que a própria sistemática do imposto – conta corrente fiscal – permite que existam meses em que não se tenha valores a recolher, sendo o maior exemplo disso a formação de estoques para datas comemorativas.
O fato principal é que o STF acabou por criar um novo tipo penal, um novo crime. Assim, caso o contribuinte omita informações ao fisco, haverá uma penalidade específica, descrita no art. 1°, I da Lei n° 8.137/90. Se fraudar informações, incorrerá no inciso II da mesma lei. Mas o caso analisado não poderia ser considerado como crime de apropriação indébita, por falta de enquadramento na descrição do crime – simplesmente por não existir apropriação indébita de débito próprio.
A decisão acabou por violar o princípio da reserva legal, o qual prevê, em termos simples, que para haver crime deve existir lei anterior que o defina. Ou seja, a decisão causou ainda mais insegurança jurídica, além de abrir margem para que outros tributos declarados e não pagos também se tornem crimes.
A repercussão do entendimento do STF não demorará muito para começar a surtir efeitos. Se serão positivos, combatendo e evitando a sonegação, teremos que aguardar para ver.
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